O Vinho e a estrutura do racismo

Há alguns anos, em busca de desenvolvimento e conhecimento dos produtores nacionais, fiz aquilo que indico a todos amantes do vinho, seja profissional ou não: elaborei um roteiro de viagem e parti para visitar alguns produtores nacionais do Rio Grande do Sul, mais especificamente, da região de Bento Gonçalves e entorno.

As distancias são curtas entre uma vinícola e outra, o que nos permitiu conhecer cerca de 20 produtores em 5 dias e como parte das visitações, em cada local nos era apresentada a história da família e como consequência, da própria vinícola. Em um exercício automático e não intencional, em cada história de sucesso apresentada, eu me transportava mentalmente para a época em que tal história acontecia e tentava associar tudo aquilo que eu ouvia à situação do país no momento para entender como aquilo tudo havia se desenrolado ao longo do tempo

Não é difícil entender esse meu processo de compreensão das coisas se considerar que eu sou convicto de que o hoje é resultado do ontem, ou seja, tudo que acontece atualmente, é resultado de um processo histórico. 

Nada é um fato isolado. Tudo é construção histórica.

Todo aquele que se preocupa com questões sociais, em algum momento já procurou ou tentou identificar o ponto ou o momento em que seu ramo de atuação se cruza com as mazelas sociais, seja como causa ou efeito dessas, e lá no Sul do país foi que consegui identificar um desses momentos históricos onde um fato especifico, como claro exemplo do “efeito borboleta”, desboca em um processo que no percurso ou no final, será parte de um problema muito maior mais à frente.

Voltando à viagem, há algo em comum na história da grande maioria dos produtores locais: o fato de terem sido fundadas por imigrantes.

Esse fato, posto assim, poderia ser lido assim como foi escrito: como um parágrafo solto em um texto, como um episódio isolado em nossa história, porém, quando colocado em contexto, nos ajuda a identificar e entender que esse fato contribui para a construção de um pilar do nosso famigerado racismo estrutural. 

Aqui eu devo dizer que admiro o conceito de racismo estrutural, porém entendo que há um desvirtuamento deste, afim de que na pratica passe a se eximir de culpa todo aquele que comete atos racistas, empurrando toda a responsabilidade INDIVIDUAL de episódios discriminatórios, ao coletivo histórico e social abarcados pela nossa estrutura, afinal se o racismo é da estrutura (coletivo), ela não é de ninguém (individuo). É necessário separar esses conceitos, mas isso fica pra outro texto…

A imigração mencionada em quase todos os locais é parte do processo de colonização do estado do Rio Grande do Sul. Chamado de Walkerfield, o programa abrangia essencialmente imigrantes alemães, italianos e açorianos, aos quais eram cedidas ferramentas, animais, sementes, um lote de terra e pagamento de subsídios para alimentação durante o primeiro ano de estabelecimento.

Se isso te passou despercebido, eu peço que retorne e leia a palavra “cedido” de forma bem enfática, pois foi exatamente isso que aconteceu: para estimular a imigração, o Brasil cedeu, doou, entregou, distribuiu, ou seja DEU terras, ferramentas e toda estrutura aos imigrantes europeus para que estes desenvolvessem a região.

Os mais céticos aqui poderiam dizer: “Ora, mas é uma conduta legitima, afinal era uma imensidão de terra sem quem pudesse nela produzir. Nada mais justo que se estimular tal desenvolvimento” e confesso que eu tendo a concordar com esse argumento, isso claro, antes de se adicionar as informações a seguir ao contexto.

Havia uma certa exigência para que o país aceitasse o estabelecimento de determinado imigrante: que este fosse branco, pois o plano dos legisladores do império à época era de se clarear a população afim de que em determinado momento se extinguisse toda a população negra do país. 

Certamente você já viu esse projeto, e eu digo “viu o projeto” no lugar de “leu o projeto” porque há uma pintura que se encontra facilmente na internet chamada “A Redenção de Cam”, do artista espanhol Modesto Brocos, que retrata exatamente o que a elite nacional pretendia. Nele, à esquerda vemos uma senhora preta de pele retinta, ao lado de uma moça parda que tem aos braços uma criança de pele clara, entendendo-se tratar de mãe, filha e neto. A senhora à esquerda aparentemente agradece aos céus o fato de ter clareado sua família ao que ao fundo, um homem branco parece ter sido o responsável por tal clareamento. Houve de fato um projeto eugenista no Brasil e a imigração de pessoas que obrigatoriamente não poderiam conter resquícios de melanina em sua epiderme obedece a este projeto assim como a maçã obedece à gravidade ao se soltar do galho.

Para corroborar, acrescentasse ainda uma reflexão: o que foi feito para os trabalhadores que aqui já estavam? 

Em tempo: Trabalhadores = Pessoas escravizadas.

Ora, todos sabemos que a abolição da escravatura se deu muito mais por questões comerciais do que humanitárias e, partindo dessa conclusão, é fácil entender porque a abolição não veio acompanhada de um projeto de integração desses escravizados na sociedade, garantindo a eles  que foi dado aos imigrantes: terras e estrutura, ao contrário, o que se fez foi garantir que estes não tivessem condições de adquirir qualquer pedaço de terra de forma alguma, o que pode-se constatar na Lei de Terras de 1850.

Enfim, eu te digo que há aqueles que nem aqui estavam e que ganharam de tudo para trabalhar aqui, te digo ainda que há aqueles que estavam aqui contra sua vontade, trabalhando forçadamente e que nada tiveram para que aqui se desenvolvessem e com esses dados, peço que você me diga qual a cor de cada uma dessas pessoas… 

Imagine a dor, adivinhe a cor…

Acho que quando pesquisar sobre determinado produtor de vinhos na internet, não lhe será difícil entender porque na foto aparecerá apenas pessoas de pele clara…

Não se trata apenas de um episódio de vinícolas usufruindo de trabalho análogo à escravidão, é sobre o processo que permitiu que isso acontecesse.

Nada é um fato isolado. Tudo é construção histórica.

Peço no entanto que não se engane quanto a minha pessoa pois sou bairrista por demais e um entusiasta do vinho nacional, mas entendo que este é mais um espaço que cada vez mais deve ser ocupado por potencias negras, pois é a única forma que temos de ter um pouco da nossa parte da história contada, já que o contrario é o que se tem hoje: a fabula de superação de uma família imigrante, que sai do seu continente apenas com algumas mudas para plantar e que, por força unicamente do seu trabalho e do seu empenho, conseguiu prosperar em um país longínquo…(bullshit!).

Fale sobre isso com aquele seu amigo que é contra cotas…

Aaahhh, a viagem foi sensacional e fomos bem recebidos em todos os locais em que estivemos!!

Super recomendo!!

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